Deus arrepende-se?

O que significa “arrependeu-se”?

Vamos olhar para Jonas 3:10 – “Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez”.

A palavra no original significa: “consolar”[1]; “confortar, aliviado, compaixão”[2]“movido a pena”[3].

Nesse sentido, podemos entender que Deus teve compaixão por aquelas pessoas não fazendo aquilo que anteriormente tinha dito.

A palavra “arrependimento” não é algo que Deus tenha pensado errado e que, entretanto, tivesse mudado de ideias. Aliás, não é a mesma palavra usada para o ser humano o qual se arrepende por ter feito ou pensado algo errado.

Além disso, a Bíblia é clara na afirmação que Deus não se arrepende em circunstância alguma. Vejamos o que diz em:

  •   Números 23:19 “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?”[4].
  • I Samuel 15:29 “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa”. 

 É curioso ver que a palavra arrependimento usada para o ser humano seja “shubh” e quando se refere a Deus seja “naham”. Contudo, poderemos ainda pensar se Deus mudou de planos face ao arrependimento e conversão do povo de Nínive ou se, de facto, não houve mudança de planos de Deus sendo apenas uma confirmação da Sua determinação.

 

1. Antropopatismo e antropomorfismo

Segundo John Stott[5], na Bíblia encontramos muitas descrições antropomórficas (dar características humanas a Deus) ao referir-se aos «olhos, boca e ouvidos de Deus», que Deus tem o «Seu braço estendido», a «Sua forte mão», o «Seu sopro» e outras características humanas também. E era algum tão comum que os escritores bíblicos não tinham que se desculpar de usar esta linguagem antropomórfica porque as pessoas entendiam que era linguagem poética e não científica ou teológica.

Já no que concerne ao antropopatismo (dar emoções humanas a Deus), também podemos encontrar na Bíblia. Por exemplo, em Génesis 6:6 podemos ver que Deus  entristeceu-se profundamente. Ou então, quando é dado o sentimento humano que Deus se arrependeu como em Jonas 3:10.

Neste sentido, devemos entender o «arrependimento de Deus» como uma linguagem antropopática.

Joel Beeke, a propósito deste aspecto, tem uma afirmação muito interessante[6]:

«O arrependimento indica tanto um erro cometido pela pessoa que se arrepende, e que não foi previsto, quanto tristeza pelo pecado. Afirmar que Deus se arrepende no sentido estrito seria negar o seu pré-conhecimento e, assim, afirmar que existe mal nele. 

A explicação para a razão das Escrituras falarem de Deus “arrepender-se” baseia-se no princípio da adaptação: “Nas

Escrituras, Deus adapta-se à nossa limitação”. Noutras palavras, uma vez que as criaturas finitas não conseguem compreender o Deus infinito, às vezes Deus veste-se da nossa natureza e emprega certas expressões para que o

compreendamos segundo a nossa capacidade e, examinando a nós mesmos, aprendamos algo da natureza de Deus. (…) Se a essência de Deus é mudada, então só pode ser mudada por um ser mais poderoso do que Deus. (…) É verdade que nas Escrituras há passagens que parecem deixar implícito que Deus pode mudar de ideia, mas há um número bem maior de textos que asseguram a imutabilidade de Deus no que diz respeito ao Seu ser e ao Seu conhecimento. (…) Os teólogos puritanos falavam de arrependimento não estrito porque reflecte a linguagem de adaptação aos seres humanos».

Também, ainda a propósito deste aspecto, Berkhof é muito pertinente[7]:

«Se a Escritura fala do Seu (Deus) arrependimento, da sua mudança de intenção, e da alteração que faz da sua relação com pecadores quando esses arrependem-se, devemos lembrar-nos de que se trata apenas de um modo antropopático de falar. Na realidade, a mudança não é em Deus, mas no homem e nas relações do homem com Deus. É importante sustentar a doutrina da imutabilidade de Deus contra a doutrina pelagiana e arminiana de que Deus é sujeito a mudança (…) no Seu conhecimento e na Sua vontade, de modo que as duas decisões dependem em grande medida das acções do
homem».

Contudo, será que o texto deixa de ser inerrante por o escritor ter falado numa linguagem humana e não de uma forma, digamos, teologicamente correcta?

 

 2. Inerrância/infabilidade das Escrituras e o reconhecimento da linguagem humana

m dos princípios que sempre regulou o cristianismo foi a afirmação da inerrância das Escrituras. Segundo Ward[8] isso significa:

«(…) ela não mente. Dizer que é “inerrante” é dizer, além disso, que ela não afirma quaisquer erros de facto, quer se refira aos eventos da vida de Cristo, quer a outros detalhes da história e da geografia. O que ela afirma é verdadeiro. (…) O infalibilismo admite que alguns detalhes sobre tempo e lugar nos Evangelhos possam estar errados, sem concluir com isso que os ensinos da Bíblia sobre salvação e vida espiritual não são confiáveis».

Além disso, Ward diz-nos também que a Bíblia tem em conta a linguagem humana e comum da altura[9]:

«A crença na inerrância bíblica leva naturalmente em conta uma série de características das Escrituras que decorrem com características de uso quotidiano».

Kevin DeYoung mostra-nos também que[10]:

«A autoria divina das Escrituras não impede o uso de instrumentação humana activa, assim como a participação humana não torna as Escrituras menos perfeita e divina».

John Stott, também acerca deste assunto, reconheceu a personalidade de quem escreveu[11]:

«Quaisquer que tenham sido os meios de comunicação que Deus empregou para falar com seres humanos, Ele nunca obliterou a personalidade de cada um. Ao contrário, ao escreverem, o seu estilo literário e vocabulário eram próprios».

Nesse sentido, é importante saber que a Bíblia reconhece as limitações do ser humano em contraste com Deus. Ao falar-se da magnitude de Deus e que a Bíblia não tem erros, entende-se também que os escritores bíblicos têm as suas capacidades a nível intelectual limitado perante tanta grandiosidade.

Por isso, não é errado dizer que os escritores escreveram segundo o Seu próprio conhecimento escrevendo também de forma a que as pessoas entendem-se usando para isso palavras humanas referindo-se a Deus.

 

3. Imutabilidade de Deus

Esta é uma das doutrinas cristãs que mais segurança nos deve trazer. Saber quem Deus é e como Ele nunca muda. É o mesmo de sempre e para sempre. Berkhof dá-nos um vislumbre desta doutrina[12]:

«Até a razão nos ensina que não é possível nenhuma mudança em Deus, visto que qualquer mudança é para melhor ou para pior. Mas em Deus, a perfeição absoluta, melhoramento e deterioração são igualmente impossíveis. A imutabilidade de Deus é claramente ensinada em passagens da Escritura como Êxodo 3:14; Salmos 102:26-28; Isaías 41:4 e 48:12; Malaquias 3:16; Romanos 1:23; Hebreus 1:11-12; Tiago 1:17. (…) Ele (Deus) está cercado de mudanças, mudanças nas relações dos homens com ele, mas não há nenhuma mudança em Seu ser, nos Seus atributos, nos Seus propósitos, nos Seus motivos de acção, nem nas Suas promessas».

Franklim Ferreira e Alan Myatt, citando Tomás de Aquino, também trazem-nos algo importante a este assunto:

«(…) Tudo o que muda, de qualquer modo, é, de certa maneira, potencial. Logo, é impossível que Deus seja mutável, de qualquer modo. – Segundo, porque de todo movido há algo que permanece a algo que se modifica: assim o que se move da brancura para negrura permanece pela substância; de maneira que todo o ser movido implica uma composição. Ora,
como já foi demonstrado, Deus, absolutamente simples, não tem nenhuma composição. Logo, é claro que não pode sofrer nenhuma mudança».

4. Presciência

Quando lemos na Bíblia que Deus é Soberano e que nenhum do Seu plano será frustrado (Jó 42:2), isso revela-nos que conhece porque Ele próprio determinou. O que significa presciência de Deus?

Se Deus previu a crença do povo de Nínive e então o elegeu, o Homem teve parte no processo da salvação. Deus não poderá ser assim digno de toda a glória o que vai contra várias passagens bíblicas, por exemplo: João 15:16.

Além disso, se assim fosse, dava ao Homem crédito indevido pela sua salvação, permitindo-lhe partilhar a glória que apenas pertence a Deus quando na verdade é tudo fruto da graça – Efésios 2:8-9.

Se não for esta forma que vemos a presciência, certamente irá contra a doutrina da soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas:

Isaías 46:9-10 “Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade”.

Vejamos outro exemplo da presciência de Deus:

Actos dos Apóstolos 2.22-23 “Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o
por mãos de iníquos”.

Se presciência for então apenas previsão do futuro, seria o mesmo que dizer isto:
“Deus olhou para o futuro, viu que Jesus ia morrer, e decidiu (aproveitando a deixa) fazer dele o Salvador”.

Então o termo “presciência” em Deus é muito mais do que saber de antemão o que irá acontecer prevendo acontecimentos futuros até porque o conceito de tempo é algo humano e Deus está para além do tempo. Deus é passado, presente e futuro.
Presciência implica soberania em determinar aquilo que irá acontecer antes mesmo de ter acontecido. Ou seja, conheceu porque determinou.

Conclusão
Quando lemos na Bíblia que Deus se arrependeu, temos que ter em conta todos os conceitos que anteriormente analisámos: a inerrância da Bíblia, a imutabilidade de Deus e o reconhecimento da linguagem humana a referir-se a Deus (antropomorfismo e
antropopatismo).

Nesse sentido, quando lemos na Bíblia que Deus se arrependeu, apenas mostra que na óptica de quem escreveu, Deus mudou os Seus planos. 

Contudo, na verdade, Deus quis que assim fosse porque Ele é Soberano e, olhando por exemplo para Jonas 3:10, todos os pormenores que acontecem, acontecem com o propósito divino.

 

 

 

 

 

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[1] FRANCIS BROWN, SAMUEL ROLLES DRIVER, E CHARLES AUGUSTUS BRIGGS – Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon, p. 636.

[2] MIKE BUTTERWORTH, “נחם”, ED. WILLEM A. VANGEMEREN, Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011, p. 1129.

[3] RICHARD WHITAKER ET AL., The Abridged Brown-Driver-Briggs Hebrew-English Lexicon of the Old Testament: from A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, p.1906.

[4] Sociedade Bíblica do Brasil, Almeida Revista e Actualizada, com números de Strong (Sociedade Bíblica do Brasil, 2003), Nm 23.19.

[5] STOTT, JOHN, Para entender a Bíblia, p. 161

[6] BEEKE, JOEL, Teologia puritana, p. 111

[7] BERHKOF, LOUIS, Teologia sistemática, p.59

[8] WARD, TIMOTHY, Teologia da Revelação, p. 159-160

[9] Ibid., p. 162

[10] DEYOUNG, KEVIN, Levando Deus a sério, p. 40

[11] STOTT, JOHN, Para entender a Bíblia, p. 159

[12] BERKHOF, LOUIS, Teologia sistemática, p. 58-59

Jónatas Rafael Lopes

Jonatas Rafael Lopes é pastor na Igreja Baptista da Graça, em Lisboa, e pós-graduado em estudos bíblicos. É membro da direção da Convenção Baptista Portuguesa responsável por Apoio a Igrejas. Jonatas é casado com a Filipa Lopes, e eles têm quatro filhos: Raquel, Samuel, Gabriel e Isabel.

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